Turismo em Lisboa e duas crónicas de Lucy Pepper

Este texto é suscitado por duas crónicas sobre o Turismo em Lisboa que Lucy Pepper acaba de publicar no Observador (1). Não saímos a terreiro para ‘defender’ o turismo em Lisboa contra os ‘ataques’ de uma cronista. A relação do turismo com a economia, sociedade e cultura em Lisboa exige atenção que não tem tido e suscita reacções da elite lisboeta que não facilitam a sua qualificação – é este o quadro em que nos situamos.

*Boom tipo bolha de sabão ou seguido de definhamento?
O crescimento do turismo em Lisboa data de 1998 e é estrutural a partir de 2004. As consequências e sequelas da crise de 2008/09 são incidentes conjunturais rapidamente ultrapassados, o que confirma a resiliência da procura/oferta do turismo em Lisboa. O mesmo acontece no Algarve com a crise de 1974/76.

O turismo em Lisboa é hoje uma realidade pujante e com potencial de crescimento. É evidente que uma fase de crescimento acelerado é limitada no tempo e pode ser interrompida por factores internos e externos de influência mais ou menos importante.

LP parece referir uma alteração negativa mais fundamental do turismo em Lisboa, mas a palavra boom seguida de crash (ou bolha de sabão) ou definhamento irreversível não é a maneira mais adequada para o efeito, porque pressupõe incapacidade de reacção da intervenção pública e iniciativa privada. A experiência mostra que crash ou definhamento estão sobretudo ligados à procura e não à oferta, e têm a ver com história, geografia e tecnologia.

Damos exemplos. Na década de 1950, a democratização do transporte aéreo pelo charter do package holiday transfere para o Mediterrâneo a procura já massificada de estadias estivais nos seaside resorts dos mares do Norte. Em consequência estes entram em declínio acentuado, com destaque para os do Reino Unido que eram dos mais importantes do continente. A sua bonança começa em 1750 quando o happening social das termas de Bath se transfere para a praia de Brighton, com benefício do patrocínio do Príncipe Regente e futuro Rei Jorge IV. Depois a procura cresce com o acesso por caminho-de-ferro e estão prósperos antes da II Grande Guerra. É caso para dizer que com ferro mata, com ferro morre.

A urbanização da Junqueira data do início do século XVIII e as casas apalaçadas que ainda lá vemos hoje são edificadas à beira mar, quando a actual Rua da Junqueira era praia. No virar dos séculos XVIII/XIX Rudders descreve o banho popular na então praia da Junqueira. Já no século XIX, a elite instala-se na praia de Pedrouços e depois em Caxias. Este progressivo afastamento de Lisboa, conhece uma ruptura quando a corte começa a frequentar Cascais e, sobretudo, quando os promotores da urbanização turística do Monte Estoril abrem a ligação ferroviária a Belém e depois ao Cais do Sodré. Um século depois, o happening da ‘Costa do Sol portuguesa’ transfere-se para o Algarve.

*Implantação espacial e integração do turismo na urbe em transformação
Desenvolver o turismo implica receber milhões de pessoas. Foi assim no Algarve e está a ser assim em Lisboa. O modelo para analisar esse processo é simples e passa por qualificar a resposta ao dilema entre conservar e desenvolver. 

Desconheço o equivalente urbano do Design with nature de Ian Mc Harg para áreas de resort como o Algarve, pelo que no caso de Lisboa me limito a análise e conceptualização próprias.

Sempre abordei o turismo segundo o espírito que descobri recentemente ser o de Nova Iorque [sublinhado meu]: “As New York City’s fastest-growing industry, tourism has been a stabilizing force for the City during the economic downturn. Our visitors are not only part of the backbone of our City’s economy, they also add to the excitement, energy and diversity of NYC.”.

Em Lisboa ainda falta catalizar a mais-valia dos turistas para o “excitement, energy and diversity” da cidade.

Como acontece no Algarve (2), o turismo ocupa pequena parte da cidade de Lisboa (não calculei, mas não deve atingir 30%). A cidade no seu conjunto e estes 30% em particular são espaço de transformações económicas, sociais e culturais prévias ao crescimento do turismo, mas que este influencia.

LP refere “O turismo está a estragar Lisboa”, “Lisboa está a ceder ao apodrecimento turístico”, “plastificação em curso em Lisboa”, “Logo que se tenha Disney-Sardinificado um pouco mais” ou “o apodrecimento turístico já começou”, opiniões que respeito. 

Não ‘ataco’ LP em ‘defesa’ do turismo por causa destas opiniões. Quando LP utiliza “estragar” e não ‘transformar’ está a degradar esse bem precioso que é a sua opinião sobre o turismo em Lisboa.

Sem piadas e com mais modéstia do que a mostrada por LP, digo que estas opiniões dificultam a observação da big picture: a nova dinâmica da transformação da urbe turística pela procura de turismo. Podem utilizar todos os adjectivos pejorativos do dicionário para maldizer o turismo de Lisboa que eu pouco me importo. Não podem é ignorar a análise séria destas transformações de modo a contribuir para qualificar a relação forte e positiva entre o turismo e a cidade que o acolhe.

Aposto dobrado contra singelo que, a exemplo do Algarve, o turismo vai contribuir para inverter a diminuição da população residente na cidade no seu conjunto e até nos espaços habitáveis da urbe turística.

*Identidade de Lisboa e procura de autenticidade pelos turistas
A tão falada ‘descaracterização’ de Lisboa tem a ver com duas noções de quase impossível consensualização, mas que têm de ser abordadas com cultura e instrumentos técnicos, e não com opiniões ligeiras de comentadores de ‘largo espectro’.

A identidade é nossa (na vida empresarial é identity ou corporate culture) e existe independentemente do turismo. Não é consensual, mas é possível e necessário fazer um esforço para ‘identificar a identidade’. Já tivemos a Política do Bom Gosto de António Ferro e, no tempo, até se compreendia. Hoje é preciso muito mais. A título de exemplo, recuso que a nossa identidade integre a falta de limpeza, a vida nocturna degradada e a incapacidade em regular o turismo, entre outros.

A autenticidade põe um problema diferente, porque existe na mente, coração e espírito dos turistas (é o equivalente da brand image da vida empresarial). A autenticidade escapa-nos em grande parte, mas é passível de alguma influência por ‘tourism destination branding’ necessariamente relacionado com as vendas. 

Este é um dos espaços de acção da Associação Turismo Lisboa (ATL).

É neste quadro que devemos ler a singular opinião de LP sobre os turistas:

-na crónica do dia 3 de Abril, “a maior parte dos turistas não percebem a diferença entre uma bela posta de bacalhau e uma má fatia de queijo”,

-na de 10 de Abril, “Embora o turista pense que sabe o que quer e o que é bom, a verdade é que o turista não sabe o que é bom nem autêntico, nem precisa de saber ou de dar importância a isso.”.

A análise dos inquéritos que a ATL realiza mostra um turista muito diferente. De novo, LP não pode degradar a sua opinião a este ponto.

De novo na crónica de 10 de Abril,

-“O turista é um animal muito seletivo e esquisito, e para manter o seu interesse, uma cidade tem de ter tudo, ou, falhando isso, pelo menos uma cadeia de hotéis de 5 estrelas perto de uma praia com sol e calor garantidos durante oito meses do ano.”.

Afinal o turista já é ‘selectivo’ e quanto ao resto da afirmação … fiquei speechless. A que cidade se refere LP?

*Turismo e outras actividades económicas
O essencial da crónica de 10 de Abril gira em torno de tema pacífico e LP arromba um portão escancarado. Citamos: “Se Lisboa não se concentrar em outras actividades para além do turismo, o que restará de Lisboa quando os turistas a tiverem abandonado?”, “Nada tenho contra uma cidade cheia, vibrante e próspera. […] Só que essa cidade tem de ser vibrante e próspera com actividades para além do turismo.”.

Já vimos o “turistas a tiverem abandonado” e falta o essencial. Desde o início do século, o turismo é a actividade económica que mais se desenvolve em Lisboa. Ninguém defende que seja a única e exclusiva, mas também ninguém pensa competir aos empresários do turismo promover novas actividades em Lisboa, com excepções a confirmar a regra.

O turismo gera cosmopolitismo e massa critica em notoriedade internacional, transporte aéreo, alojamento e serviços cosmopolitas que facilitam outras actividades. O caso mais evidente é tudo o que se passa em volta de empreendedorismo e startups. O caso menos falado mas relevante é o da instalação em Lisboa de centros de apoio a clientes de empresas estrangeiras e que geram exportação de serviços.

Sobre ‘as lojas que desaparecem’, é fascinante como praticamente ninguém se interroga sobre ‘como tirar mais partido da procura dos turistas’ e o pastel de bacalhau com queijo da Serra ser assunto central na crítica ao turismo. A mais recente crónica de José Diogo Quintela é elucidativa sobre a tipologia das lojas.

*Economia da noite em Lisboa
A falta pode ser minha, mas nunca vi ou li referência à economia da noite em Lisboa – sugiro ao leitor googlar ‘night economy’ e ver a informação que obtém. A economia da noite é a actividade económica cuja operação e implantação na urbe lisboeta mais atenta contra os direitos mais básicos dos habitantes da cidade.

Perante a gravidade da situação a que se chegou, abundam acções dispersas mas ninguém a encara a night economy à luz da regulação do dilema entre conservar/desenvolver.

LP não refere uma das maiores ameaças ao turismo em Lisboa: a atracção massiva dos lager touts (googlar) das suburbias das cidades do Norte da Europa por uma night economy sem regras nem regulação. Neste campo, é útil conhecer como

-a desregulada e dominante economia da noite degradou o eixo que vai do Montechoro à Oura, em Albufeira, com as forças vivas da cidade e o município a tolerar que tal acontecesse.

*Turismo – exigências do sucesso
Hoje, o sucesso do Turismo em Lisboa exige governança pelo Município dos factores críticos de sucesso (3).

Importa consensualizar Visão e Orientações Estratégicas simples e realistas sobre o Turismo na Cidade, para alinhar e motivar os actores envolvidos.
Há que ultrapassar preconceitos e falta de informação sobre o turismo e temas importantes, ainda proscritos por opinião pública que inspira temor à política e dificulta eficiência na acção: quantidade de visitantes, imobiliária turística, alojamento paralelo, Visto Dourado, entre outros.

A imagem de Lisboa é mais diversificada do que a do destino turístico. A exemplo de outras cidades, o turismo é o mais importante comunicador da imagem da cidade. Esta sinergia não é aproveitada como devido.

Cabe ao Município intervir forte na regeneração urbana no Centro Histórico, indispensável ao sucesso do turismo, à cidade atrair pessoas e actividades e realizar a ambição de ser Start up, Creative e Knowledge City (na expressão da CML).

O sucesso do destino Lisboa depende de duas iniciativas do Município. A primeira é cuidar da cidade em aspectos que são parte da experiência de quem visita e benefício para quem nela reside.

A segunda exclui práticas vigentes com consequências graves para o turismo na cidade, e consiste em definir e implementar regulação forte da oferta pública com medidas de que citamos as mais evidentes: segurança e limpeza em função da utilização turística; aparência das actividades coerente com semântica da área; esplanadas e ambulantes respeitam usufruto do espaço público; tolerância zero para horários e ruído nocturno com certificação da segurança privada, botellon, beber na rua e outros excessos; WCs limpos a evitar o mau cheiro. Estas são críticas na origem das tensões entre turistas e habitantes e degradação da imagem do destino e da cidade de Barcelona. Evitar este desastre é responsabilidade da Governança municipal e não de abstracto ‘turismo’.


A Bem da Nação

Lisboa 11 de Abril de 2016

Sérgio Palma Brito


Notas

(1)ver
-2016.04.03.Observador

O turismo está a estragar Lisboa (Tourist rot)

-2016.04.10.Lucy.Observador

Lisboa, não vendas a tua alma aos turistas (Lisbon, don’t sell your soul)
Os títulos em inglês não têm o conteúdo emocional dos em português.

(2)A superfície do Algarve é de 500.000 hectares e a do Baixo Algarve (sem a Serra) é de cerca de um terço. O solo urbano e turístico depois dos PDMs da década de 1990 é de 19.300 hectares e a parte do turismo ocupa parte de uma estrei franja do Litoral..

(3)Este texto é retirado de um artigo com o mesmo título publicado na Pensar XXI de Janeiro a Junho de 2015.


O turismo do Algarve cresceu e crescerá sem a TAP e daí não vem mal ao mundo

Post destinado a informar o cidadão interessado em conhecer a realidade da relação entre turismo do Algarve e a TAP. 

É também dedicado a todos os que no turismo do Algarve que têm vivido em paz com esta realidade, o que é puro realismo, e em especial aos que agora começaram aos pulos e berros só porque Rui Moreira decidiu espingardar contra a TAP, o que apenas aumenta a entropia do Universo.

*De 1970 até 2014
Entre 1970/2014 o turismo internacional do Algarve cresce e afirma-se sem o contributo da TAP (gráfico 1). A ‘transportadora aérea nacional’ que era suposto ‘garantir’ o apoio ao turismo do Algarve não apoiou no que era essencial: transportar turistas para a Região (1).

Não garantiu, não garante e não garantirá pela conjugação de três factores:

-a cultura empresarial elitista (hoje menos) e custos elevados de exploração impedem que seja competitiva no leisure market da Europa do Norte para uma área turística do Mediterrâneo como é o caso do Algarve,

-porque os operadores turísticos de package holiday cedo integram companhias charter in house e limitam a contratação fora,

-as companhias low cost que hoje dominam as rotas ponto a ponto da Europa têm custos unitários que lhes permitem ser rentáveis onde a TAP nunca será.

Gráfico 1 – Passageiros desembarcados no aeroporto de Faro por companhias nacionais e estrangeiras (1970/2014)
(milhares)

Fonte: Elaboração própria com base em INE – Estatísticas dos Transportes

*Turismo do Algarve e TAP na crise de 1973/1976
Ainda o turismo do Algarve anda de calças curtas e já enfrenta a primeira crise da procura (gráfico 2):

-em 1973 não cresce pelo primeiro choque do preço do petróleo,

-em entre 1974/1976 é a queda da procura provocada pela situação revolucionária no País.

Gráfico 2 – Passageiros no aeroporto de Faro
(unidades)

Fonte: Elaboração própria com base em INE – Estatísticas dos Transportes e informação da então Direcção Geral da Aeronáutica Civil

Passada esta fase, a partir de 1977 o turismo do Algarve regressa ao crescimento. O Algarve vive um ‘momento de verdade’ e a procura turística mostra uma resiliência forte.

Neste momento de verdade quando a procura cai e há problemas graves, a TAP nacionalizada, ‘nossa’ e que ‘garante’ e tal e coiso falha (gráfico 3):

-a partir de 1976, a recuperação do tráfego aéreo é assegurada pelas companhias estrangeiras e o tráfego das companhias nacionais (TAP) estagna.

Gráfico 3 – Passageiros desembarcados no aeroporto de Faro por companhias nacionais e estrangeiras (1970/1983)
(milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE – Estatísticas dos Transportes

*Domínio dos operadores turísticos implica domínio do charter
No modelo dominante do operador turístico de package holiday a companhia charter depende da procura dos operadores e, quando integrada, do operador a que pertence. Importa esclarecer um equívoco:

-não há concorrência e/ou alternativa exclusiva entre companhia charter e low cost,

-são as pessoas que escolhem comprar pacotes de férias ou tratar das suas estadias directamente com os fornecedores de cada serviço (2).
Na década de oitenta domina o transporte aéreo por companhia charter (gráfico 4). 

Desde há anos, a realidade que o gráfico 4 ilustra mudou radicalmente (3).

Gráfico 4 – Quando o turismo é o operador e o operador é o turismo
(milhares)

Fonte: Elaboração própria com base em informação da Direcção Geral da Aeronáutica Civil
Nota – Não inclui o então designado Tráfego Doméstico, hoje Tráfego Interior, na ocorrência a rota Lisboa/Faro.


A Bem da Nação

Lisboa 1 de Abril de 2016

Sérgio Palma Brito


Notas

(1)Não ignoro, antes registo e em muitos casos estou grato a todos os que na TAP sempre apoiaram a iniciativa privada do Algarve no que estava ao seu alcance. Bem hajam.

(2)É um exemplo da opção entre bundling e unbundling de serviços – nos restaurantes, é optar ente menu prefixado (bundled) ou escolher na ementa (unbundled).

(3)Na altura não havia internet, smartphones nem nada disso. Uma conversa com um jovem quadro da então DGAC (hoje o gestor Rui Veres) e o eficiente senhor Spínola passava a dar-nos uma fotocópia A3 com informação a que hoje não temos acesso. Nada para a progresso.