A TAP, o hub e o Acordo sobre Serviços Aéreos entre Portugal e o Brasil

Na poeira levantada pela má discussão sobre a privatização da TAP, há uma realidade crucial que escapa a praticamente toda a gente:

-a sobrevivência da TAP como a conhecemos depende do hub intercontinental,

-o hub tal como o conhecemos depende do tráfego aéreo com o Brasil,

-o tráfego aéreo com o Brasil tal como o conhecemos depende de vários factores entre os quais o Acordo sobre Serviços Aéreos (1),

-estes vários factores tal como os desconhecemos dependem em boa parte dos responsáveis portugueses,

-os responsáveis portugueses tal como os conhecemos não merecem a confiança do cidadão interessado na vida pública.

A realidade, crucial ou não, pode escapar a quase toda a gente, mas não ao vosso blogue. No presente post

-explicamos as mais pertinentes disposições do Acordo sobre Serviços Aéreos entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil,

-abordamos questões de que não se fala, mas das quais depende a sustentabilidade da TAP, em função da abordagem que delas faça o governo, a administração pública e a própria TAP.


*O Acordo na regulação internacional do transporte aéreo
Desde meados da década de 1940, a regulação do transporte aéreo internacional assenta em três pilares:

-acordos bilaterais entre estados que decidem rotas, frequências, capacidades, aeroportos e liberdades,

-pools de receitas por rota(s) e sua repartição entre as companhias que a(s) opera(m),

-preços de venda ao público que são acordados pelas companhias aéreas em reuniões multilaterais no seio da IATA (2).

Em 1993 a liberalização dos direitos de tráfego aéreo no espaço europeu torna este acordo obsoleto, na repartição de rotas, frequências e capacidades e fixação de preços.

A regulação dos direitos de tráfego aéreo entre Portugal e outros países continua a ser feita por acordos bilaterais de que o assinado entre Portugal e o Brasil é excelente exemplo.

O leitor que tem acompanhado os nossos posts fica a compreender melhor como operava a TAP de antes do 25 de Abril e a TAP nacionalizada, antes e depois de 1993 (3). 

*Artigo 2º - Concessão de direitos
O nº 1 é meramente pedagógico por dar o âmbito do Acordo:

-“Cada Parte Contratante concede à outra Parte Contratante os seguintes direitos para a exploração de serviços aéreos internacionais pela empresa designada pela outra Parte Contratante”.

*Artigo 3º – Designação das empresas
Há duas disposições relevantes:

1 - Cada Parte Contratante terá o direito de designar até duas empresas de transporte aéreo para explorar os serviços acordados nas rotas especificadas.

5 - As empresas de transporte aéreo assim designadas e autorizadas poderão iniciar, a qualquer momento, a exploração dos serviços acordados, desde que tenham sido aprovados os programas de exploração relativos a esses serviços e as respectivas tarifas estejam em vigor, [ver artigos 13.º e 17.º].

A TAP opera rotas entre onze aeroportos no Brasil e Lisboa, sede do seu hub intercontinental.

Não é normal que um estado como o do Brasil

-não indique pelo menos uma empresa para operar as mesmas onze rotas ou pelo menos algumas delas,

-aceite onze aeroportos de ligação com outro país, e aceite que seja uma empresa deste país a assegurar 100% do tráfego com origem no Brasil

*Artigo 12 – Capacidade
Os números 1 a 3 das disposições sobre Capacidade definem o que vulgarmente se chama uma ‘vaquinha’ entre as empresas para cada rota, no

-repartir o tráfego (#1),

-limitar a concorrência ao acessório (#2),

-limitar a oferta para garantir a rentabilidade (#3).

O #5 permite que a capacidade a ser operada nas rotas seja “determinada, de tempos em tempos, conjuntamente por ambas as Partes.”.

No caso do Brasil temos só temos a TAP a operar, mas na rota de Luanda há repartição equilibrada do tráfego de passageiros entre TAP e TAAG. Apesar de não conhecermos o Acordo de Tráfego entre Angola e Portugal (4), temos a convicção que o equilíbrio não resulta da mão invisível que regula a livre concorrência mas de disposições equivalentes às que encontramos no Acordo entre Portugal e o Brasil.

*Artigo 13º – Aprovação das condições de exploração
A exploração das rotas pelas empresas designadas está sujeita a aprovação das autoridades aeronáuticas da outra Parte Contratante. O mesmo acontece com “Qualquer alteração significativa a esses programas ou às condições da sua operação”.

Por outras palavras, as empresas entendem-se entre elas, mas a Administração das Partes Contractantes tem poder para intervir na maneira como o fazem.

*Artigo 17º – Tarifas
O mecanismo de fixação de tarifas é tão anti concorrencial que até a nossa Autoridade da Concorrência seria capaz de nele encontrar motivos para intervir, se para tal tivesse competência legal.

Com efeito, as tarifas a aplicar pela empresa designada são

-fixadas em níveis razoáveis, considerando “o custo de exploração, um lucro razoável e as tarifas das outras empresas que operem no todo ou parte da mesma rota” (#1),

-na medida do possível, acordadas entre as empresas designadas das duas Partes Contratantes, de acordo com os procedimentos da IATA para a fixação de tarifas (#2),

-se as companhias não chegarem a acordo, as “as autoridades aeronáuticas das Partes Contratantes deverão esforçar-se por fixar a tarifa de comum acordo (#5),

-se as autoridades aeronáuticas não chegarem a acordo, as Partes Contratantes ou chegam a acordo ou há arbitragem.

*Interrogações
Num mercado avaliado em mais de 750.000 viajantes de longo curso, o monopólio da TAP não é normal. Mais tarde ou mais cedo, será questionado. 
Resta saber como e quando.

Há factores que dependem do mercado:

-o governo brasileiro compreende que o hub gera importante tráfego adicional da Europa para o Brasil e não quebra a sua dinâmica – o que exige do governo brasileiro uma inteligência pouco frequente,

-o hub é competitivo e as empresas brasileiras concentram-se nas rotas mais rentáveis entre Brasil e Europa em ligações ponto-a-ponto.

Dois outros factores são do âmbito duvidoso da teoria da conspiração, mas não podem ser descartados:

-a TAP não fechar a Manutenção do Brasil e aguentar a sua recuperação sem custos sociais faz parte de um acordo tácito,

-a TAP 49% brasileira é também parte deste acordo.

Uma coisa é certa e a elas voltaremos:

-em vez de desperdiçar energias a garantir o hub por dez anos ou em perpetuidade (ministro da Economia dixit), o que importa é focar a atenção neste ponto fraco do hub, que o pode pura e simplesmente comprometer.


A Bem da Nação

Lisboa 19 de Junho de 2015

Sérgio Palma Brito


Notas

(1)O Acordo sobre Serviços Aéreos entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil é assinado em 11 de Novembro de 2002, aprovado pela Assembleia da Republica em 2003 e pelo Senado Federal Brasileiro em 2007. 
Ver

-Resolução da Assembleia da República n.º 38/2003 Aprova o Acordo sobre Serviços Aéreos entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Lisboa em 11 de Novembro de 2002

-Decreto nº 6.058, de 8 de Março de 2007 Promulga o Acordo sobre Serviços Aéreos entre a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa, celebrado em Lisboa, em 11 de Novembro de 2002.

(2)Ver Anexo 3 – Regulação internacional do transporte aéreo, de Portugal e a TAP no futuro (em publicação).

(3)Entre outros, ver TAP, a ‘transportadora aérea nacional’ – de 1976 a 2000, de Maio de 2014 em http://sergiopalmabrito.blogspot.pt/2015/05/blog-post.html

(4)Não o encontramos no site do INAC e ainda menos no da actual ANAC. Sabemos que em Outubro de 2010 “Portugal e Angola rubricam acordo sobre transporte aéreo”. Ver



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